Posted: 30 May 2016 03:51 PM PDT
“De como não só o delegado, mas também os ‘homens de bem’, cândidos privilegiados, sustentam o sorriso de escárnio dos estupradores” "E o que o conceito de ~ cultura do estupro ~ mostra é que essa comunidade sitiada pelo crime é esta aqui, a minha comunidade. Eu vivo nessa comunidade que pratica cotidianamente o crime. Se alguém se sente à vontade de ser violento, verbal, física ou simbolicamente, ao meu lado é porque sou seu aliado, seu sorridente cúmplice. É porque fui eu mesmo violentado em minha humanidade, que preciso recuperar não só para os atos extremos mas para toda e qualquer violência. Se as pequenas violências não fossem toleradas e estimuladas, as grandes não seriam possíveis" Por Maurício Ayer
A
República do Escárnio, como bem definiu o [Vladimir] Safatle ao tratar
dos sitiadores do governo federal, está toda no sorriso de pop star do estuprador e divulgador do vídeo expondo a menina agredida ao sair de seu depoimento na delegacia.
A
polícia diz ter dúvidas se foi estupro e não achou que a divulgação do
vídeo de uma menina de 16 anos com a genitália sangrando dê ensejo a um
flagrante. Não entendo de direito criminal, não sei quais são todos os
crimes implicados neste ato, mas a polícia obviamente sabe. E deu plena
sustentação ao sorriso escarnecedor deste indivíduo.
Mas
é outra sustentação ao sorriso do estuprador que nós homens precisamos
enfrentar. Ele só sorri e acena para as câmeras porque chegará em sua
casa, em sua comunidade, em sua rua, e rirá junto com outros muitos
homens. Imagino o que é viver numa comunidade dessas, onde os
estupradores são tratados não apenas como pessoas normais, mas até como pop stars,
gente que de repente ficou famosa porque ousou ~ ir além do ~
ordinário ~, que seria estuprar, e ~ lacrou nas redes ~ mostrando e
falando a escrotidão mais inacreditável. Que cara foda!
E
o que o conceito de ~ cultura do estupro ~ mostra é que essa comunidade
sitiada pelo crime é esta aqui, a minha comunidade. Eu vivo nessa
comunidade que pratica cotidianamente o crime. Se alguém se sente à
vontade de ser violento, verbal, física ou simbolicamente, ao meu lado é
porque sou seu aliado, seu sorridente cúmplice. É porque fui eu mesmo
violentado em minha humanidade, que preciso recuperar não só para os
atos extremos mas para toda e qualquer violência. Se as pequenas
violências não fossem toleradas e estimuladas, as grandes não seriam
possíveis.
O
único caminho que nos resta é o de agir ativamente pela destruição
desse estado violento, do qual muitos de nós se aproveitam e do qual
podemos ser cândidos beneficiários – das vantagens, dos melhores
pagamentos, de ter mais voz nos espaços, de não ser o objeto direto e
imediato da violência física.
Não
se trata de ter vergonha de ser homem. É ter vergonha na cara. É ter o
orgulho de ser homem que enfrenta o seu desafio histórico: o de
desmantelar essa organização criminosa, essa máfia – fraterna – em que
fomos metidos e que age em nós, por nós.
Fonte: OutrasPalavras, 30 de maio de 2016.
Fonte: Ruth Orkin, “American Girl in Italy”, 1951
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Posted: 29 May 2016 08:22 PM PDT
"Somos um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas, terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz, tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes, apologia ao estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.O projeto de normatização desse Brasil de horrores, para que seja bem-sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos".
____________
O
Brasil que anda se vendo no espelho é aquele formado por capitães do
mato, capatazes, senhores de engenho, feitores, bandeirantes apresadores
de índios e destruidores de quilombos, etnocidas, torturadores,
coronéis, pistoleiros, membros do esquadrão da morte, misóginos,
homofóbicos, ágrafos, parasitas sociais, fanáticos religiosos e
arrivistas inescrupulosos.
Somos
um país forjado em ferro, brasa, mel de cana, pelourinhos, senzalas,
terras concentradas, aldeias mortas pelo poder da grana e da cruz,
tambores silenciados, arrogância dos bacharéis, inclemência dos
inquisidores, truculência das oligarquias, chicote dos capatazes,
apologia ao estupro, naturalização de linchamentos e coisas do gênero.
O
projeto de normatização desse Brasil de horrores, para que seja
bem-sucedido, precisou de estratégias de desencantamento do mundo e
aprofundamento da colonização dos corpos. É o corpo, afinal, que sempre
ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais contundente o projeto
colonizador fundamentado na catequese, no trabalho forçado, na submissão
ostensiva da mulher e na preparação dos homens para a virilidade
expressa na cultura do estupro e da violência: o corpo convertido, o
corpo escravizado, o corpo feito objeto e o corpo como arma letal. Esse
Brasil é um país de corpos doentes e todos nós compartilhamos dos
ambientes doentios em que corpos brasileiros são condicionados e
educados para o horror.
É
preciso encarar que na mesma semana em que um clube de ricaços
estabeleceu que corpos subalternos não podem frequentar banheiros
destinados aos corpos bem-nascidos, trinta e três corpos educados para a
boçalidade estupraram um corpo historicamente destinado à inexistência.
Corpos de senzala e corpos de casa-grande; corpos de mulheres
preparados para o estupro e corpos machos de algozes preparados para as
funções de capitães do mato, adequadamente propícios para um país que é
obra pensada: somos feitos do que Joaquim Nabuco chamou de obra da
escravidão.
Há
quem diga que o Brasil deu errado. Discordo e recentemente escrevi
sobre essa ideia. O Brasil foi projetado pelos homens do poder para ser
excludente, racista, machista, homofóbico, concentrador de renda,
inimigo da educação, violento, assassino de sua gente, intolerante,
boçal, misógino, castrador, famélico e grosseiro. Somos isso tudo, não?
Neste sentido, desconfio que nosso problema não é ter dado errado. O
Brasil como projeto, até agora, deu certo. Somos um empreendimento
escravagista fodidor dos corpos extremamente bem-sucedido.
Fazer o Brasil começar a dar errado é a nossa tarefa mais urgente".
Luiz Antonio Simas
é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Publicou em parceria com o caricaturista Cássio Loredano, pela
editora Folha Seca, o livro O vidente míope, sobre o desenhista J.
Carlos e o Rio de Janeiro da década de 1920. É
coautor, ao lado de Alberto Mussa, do ensaio Samba de Enredo, História e
arte, lançado pela editora Civilização Brasileira (2010). Em 2012
publicou, na coleção Cadernos de Samba, o livro Portela – tantas páginas
belas, pela editora Verso Brasil. Em 2013 lançou, pela Mórula
Editorial, “Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e
terreiros”, reunindo 41 pequenos ensaios sobre cultura popular carioca,
originalmente publicados no jornal O Globo.
Fotos: Sobrenatural, 20 de junho de 201 e Correio Popular, 20 de outubro de 2015
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